quinta-feira, 30 de maio de 2013

O Silêncio e a Inaudibilidade na Forma Extraordinária

Introdução

1 Uma característica marcante da Forma Extraordinária é o uso do silêncio, principalmente o cânon silencioso, o que contrasta com a prática da Forma Ordinária. É um paralelo natural para a celebração ad orientem [1], que, como tal, desenvolveu-se e se espalhou nos primeiros séculos da Igreja[2]. O uso do silêncio na forma extraordinária é complexo, no entanto, e de fato o silêncio não é excluído na forma ordinária. Sem tentar uma descrição exaustiva do assunto, este trabalho se limitará a algumas generalizações sobre o lugar do silêncio na forma extraordinária.

2 A oração silenciosa foi um dos três aspectos da antiga tradição litúrgica latina criticados pelo Sínodo Jansenista de Pistóia de 1786, uma crítica em si condenada por Pio VI [3]. O silêncio, embora esteja agrupado juntamente com a complexidade do ritual e o uso de uma língua não-vernacular, parece ser a característica que mais profundamente desafia os princípios iluministas que motivaram Pistóia, pois não faria a liturgia ser mais imediatamente compreensível aos fiéis se fosse simplificada e traduzida para o vernáculo, se as orações fossem ainda ditas de forma inaudível. Embora o fiel, mesmo com uma formação litúrgica limitada, possa estar familiarizado com o conteúdo das orações do Ordinário ditas silenciosamente [4], é claramente necessário ir além de um modelo funcionalista e didático, e considerar o significado simbólico do silêncio, a fim de compreender o papel do mesmo.

Inaudibilidade

3 É interessante notar brevemente o caso das orações ditas não em silêncio, mas, no entanto, de forma inaudível. Isso acontece em uma Missa Cantada, quando os cantos do Intróito e do Kyrie obscurecem as orações preparatórias e aquelas imediatamente posteriores a elas, as quais, em uma Missa rezada, seriam audíveis. Semelhantemente o canto de outros Proprios e Ordinários obscurecem a leitura do padre desses mesmos textos.

4 A prática tradicional cria uma relação muito íntima entre a música litúrgica e a liturgia. O Papa São Pio X em seu Motu Próprio sobre música sacra, Tra le Sollicitudini, explicou que o canto não deve exceder desnecessariamente o espaço criado para ele pela liturgia [5]. Esses espaços seriam consideravelmente reduzidos se o celebrante não lesse os textos que o coro está cantando, e eliminados de uma vez se o canto não estivesse autorizado a obscurecer as outras orações. Quando o canto excede este espaço, Pio X advertiu

que nas funções eclesiásticas a liturgia esteja dependente da música, quando é certo que a música é que é parte da liturgia e sua humilde serva. [6].

5 O princípio da oração inaudível pelo celebrante, enquanto o canto está acontecendo, é mantido no Missal de 1970, para o Ofertório, que, aliás, pode ser dito em silêncio, mesmo que não haja canto.

Orações silenciosas do sacerdote

6 Em uma outra categoria estão aquelas orações que são, em certo sentido, privativas ao ministro sagrado dizê-las, principalmente quando ele implora a purificação e as graças para realizar o rito dignamente. Exemplos disso incluem o “Munda cor meum” antes do Evangelho, o “Lavabo” antes do cânon, e as orações ditas na Comunhão do Sacerdote. O Papa Bento XVI comenta a este respeito:

As orações silenciosas convidam o sacerdote à personificação da sua Ordem, afim de que ele, na sua própria pessoa, se entregue ao Senhor. Ao mesmo tempo, elas são uma forma realçada de todos se aproximarem do Senhor quer individual, quer conjuntamente. A reforma da Liturgia reduziu significativamente o número dessas orações sacerdotais, mas graças a Deus, elas ainda existem e devem continuar a existir [7].

7 O silêncio dessas orações é uma indicação dramática da intimidade da missão sacerdotal: são dirigidas somente a Deus. Como o Papa Bento XVI indica, é importante ressaltar tanto para o próprio sacerdote, como para os fiéis que estão para se associar com ele e seguir o seu exemplo de humildade diante de Deus.

Um Cânon Silencioso

8 Numa categoria sua específica está o Cânon da Missa. Enquanto o Sanctus é cantado, em uma Missa Cantada, durante a Cânon [8], as palavras da Consagração realizam-se durante um período privilegiado de silêncio, durante o qual nada pode ser cantado e o órgão não pode ser tocado. Este silêncio é intensificado pelo toque da sineta para assinalar, em primeiro lugar, a Consagração que se aproxima, e na própria Consagração dupla; a do pão e a do vinho. Depois, se o canto não estiver ocorrendo, pode-se ouvir o celebrante dizendo, em voz mais elevada, ‘Nobis quoque peccatoribus’, as palavras de abertura da oração pelo clero [9], que servem para enfatizar a indignidade do padre, seguidas do momento de sua mais íntima identificação com Cristo. O quase completo silêncio do cânon lhe dá uma atmosfera sagrada particular, elevando-o, em importância, acima do que se passa antes ou que vem depois dele. Ele recorda as palavras do profeta Habacuc, usado em um hino da Liturgia de São Tiago com uma tradução bem conhecida em português: “Mas o Senhor reside em sua santa morada; silêncio diante dele, ó terra inteira!” [10] Mais uma vez, no livro da Sabedoria.:

porque, quando um profundo silêncio envolvia todas as coisas, e a noite chegava ao meio de seu curso, vossa palavra todo-poderosa desceu dos céus e do trono real, e, qual um implacável guerreiro, arremessou-se sobre a terra condenada à ruína [11].

9 Esta parte da Missa, naturalmente, nos lembra o Sumo Sacerdote passando para o Santo dos Santos no Templo, a mediação de Moisés, escondido por uma nuvem sobre o Monte Sinai, e o silêncio do Calvário, quebrado apenas pelas Últimas Palavras. O sentido do sacerdote ultrapassar o mundo comum, passando a outra esfera na qual encontra Deus, é fortemente sublinhada em uma forma iconográfica. Tais paralelos têm sido observados pelos Padres e Doutores da Igreja, uma tradição resumida por São Roberto Belarmino [12].

10 Como observado acima, nas orações sacerdotais, o silêncio indica que a oração é dirigida ao Pai, e não para a congregação, mas desta vez isso não é por causa da natureza pessoal da petição, mas por causa de sua natureza exclusivamente sagrada A importância das orações do cânon fundamenta-se no que elas realizam sobre o altar: elas são, acima de tudo, performativas, não informativas ou didáticas. Como Beato John Henry, Cardeal Newman, expressou:

As palavras são necessárias, mas como meio, não como fim, não são uma meras intervenções junto ao trono da graça, elas são instrumentos de algo muito superior, de consagração, de sacrifício [13] .

11 Antes de sua eleição, o Papa Bento XVI mais de uma vez sugeriu que o cânon na Forma Ordinária fosse dito silenciosamente [4]. Ele comenta:

Qualquer um que tenha experimentado uma Igreja unida no silêncio orante da Cânon saberá o que um silêncio é realmente cheio. É ao mesmo tempo um grito alto e penetrante a Deus e um ato cheia do Espírito de oração. Aqui todo mundo realmente reza o Cânon juntos, ainda que num vínculo com a tarefa especial do ministério sacerdotal. Aqui todo mundo está unido, conquistado por Cristo, e guiados pelo Espírito Santo em um a oração comum ao Pai que é o verdadeiro sacrifício, o amor que reconcilia e une Deus e o mundo [15].

O valor de silêncio

12 Bem-aventurado Papa João Paulo II escreveu, em Spiritus et Sponsa (2003), da importância do silêncio, em relação à re-evangelização do Ocidente.

Um aspecto que é preciso cultivar com maior compromisso, no interior das nossas comunidades, é a experiência do silêncio. Temos necessidade dele “para acolher nos nossos corações a plena ressonância da voz do Espírito Santo, e para unir estreitamente a oração pessoal à Palavra de Deus e à voz pública da Igreja”. Numa sociedade que vive de maneira cada vez mais frenética, muitas vezes atordoada pelos ruídos e perdida no efémero, é vital redescobrir o valor do silêncio. Não é por acaso que mesmo para além do culto cristão, se difundem práticas de meditação que dão importância ao recolhimento. Por que não começar, com audácia pedagógica, uma educação ao silêncio no contexto de coordenadas próprias da experiência cristã? Que esteja diante dos nossos olhos o exemplo de Jesus, que “tendo saído de casa, se retirou-se num lugar deserto para ali rezar” (Mc 1, 35). Entre os seus diversos momentos e sinais, a Liturgia não pode minimizar o silêncio [16].

Como já foi discutido em Positio 2 [17], e contrário aos pressupostos iluministas de Pistóia, a liturgia se comunica não só em nível verbal, mas também em nível não-verbal: como o Beato Papa João Paulo II expressou, com símbolos, dos quais o silêncio é um poderoso exemplo. O silêncio comunica a sacralidade e a importância dos momentos-chaves na liturgia com muita força, mesmo para as pessoas da nossa própria época. [18]

13 Papa Bento XVI afirmou que “se queremos que o silêncio traga frutos, então ele não pode ser, … apenas uma interrupção dos atos litúrgicos” [19]. O que é necessário, como ele mesmo diz na passagem citada no parágrafo 11, é um ‘silêncio profundo’: um silêncio durante o qual há algo específico e apropriado para meditar. Há um certo paralelo aqui com o canto que ocorre, de acordo com o ensinamento de São Pio X, não em uma pausa na liturgia, mas enquanto ela continua. O silêncio das orações sacerdotais e do cânon, na Forma Extraordinária, fornecem esse “silêncio profundo” de uma forma que é natural e simbolicamente carregada.

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1. Ver Positio 4: Orientação Litúrgica 4
2. O Papa Bento XVI (Joseph, Cardeal Ratzinger) ‘Introdução ao Espírito da Liturgia “(Paulinas Editoras, 2012) p. 158: “Não pode ser apenas obra do acaso que, em Jerusalém, desde muito cedo, partes do Canon tenham sido rezadas silenciosamente e que, também no Ocidente, o silêncio, no Canon – parcialmente revestido de canto meditativo – se tenha tornado norma.” Faltam evidências se o Canon era dito em silêncio antes do século 8º; uma tendência em dizer em voz baixa está implícita na tentativa do imperador Justiniano para proibir esta prática no ano 565 (Novella 137 na coletânea editada por Schoell & Kroll no Corpus Juris Civilis de Mommsen vol. 3 p 699). Parece provável que a Oratio super Oblata, a ‘Oração Secreta’, era rezada em silêncio desde a sua introdução na missa, no século 5 º, embora isso não possa ser estabelecido de forma definitiva. Jungmann observa que o contraste entre as palavras ‘Nobis quoque peccatoribus’, dita em voz alta, e o resto do Canon, dito silenciosamente, foi registrado e discutido no 9 º século, citando Amalarius de Metz (d. c. 850) The Mass of the Roman Rite: Its origins and development (English edition: New York: Benzinger, 1955) Vol II, p. 257, nota de rodapé 47).
3. Papa Pio VI, Bula Auctorem Fidei (1794) 33: “A proposição do Sínodo com a qual se mostra desejar sejam eliminadas as causas pelas quais foi em parte provado o esquecimento dos princípios que dizem respeito à ordem da liturgia, “reconduzindo-a a maior simplicidade dos ritos, propondo-a em língua vernácula e proclamando-a em voz alta”; como se o ordenamento vigente da liturgia, recebido e reconhecido pela Igreja, me alguma parte proviesse de um esquecimento dos princípios pelos quais ela deve ser dirigida: temerária, ofensiva aos piedosos ouvidos, ultrajantes para com a Igreja e favorecendo as invectivas dos hereges contra ela.
4. Por muitos anos, a Sagrada Congregação dos Ritos proibiu traduções do Ordinário da Missa; esta legislação foi reiterada até 1858. No entanto, o significado do Canon, e até paráfrases dela, faziam parte das ajudas devocionais à missa, que começou a aparecer com o advento da imprensa, e desenvolveram-se especialmente a partir do século 17 em diante. Ver ‘Alcuin Reid ‘The Organic Development of the Liturgy’ (San Francisco: Ignatius Press, 2005) nota de rodapé 191 na p. 63.. Ver também ‘The Lay Folks Mass Book, or, the Manner of Hearing Mass: with Rubrics and Devotions for the People’, em Four Text e Ofícios em inglês de acordo com o Uso de York, a partir de manuscritos do século X ao XV’ por Thomas Frederick Simmons (Early English Text Society, 1879) (disponível on-line em http://archive.org/details/layfolksmassbook00simmuoft e disponível para impressão por Nabu Public Domain Reprints).
5. Papa São Pio X, Motu Proprio Tra le Sollicitudini (1903) 22-23: “Não é licito, por motivo do canto, fazer esperar o sacerdote no altar mais tempo do que exige a cerimônia litúrgica. Segundo as prescrições eclesiásticas, o Sanctus deve ser cantado antes da elevação, devendo o celebrante esperar que o canto termine, para fazer a elevação. A música do Glória e do Credo, segundo a tradição gregoriana, deve ser relativamente breve. É condenável, como abuso gravíssimo, que nas funções eclesiásticas a liturgia esteja dependente da música, quando é certo que a música é que é parte da liturgia e sua humilde serva.”
6. Acessar no texto o link para o Motu Proprio Tra le Sollicitudini para uma leitura mais completa da citação anterior n. 5. O papel da música sacra na Forma Extraordinária será o tema, esperamos, de um futuro documento de Positio.
7. Papa Bento XVI op. cit. nota de rodapé n. 2, p. 157. O Papa Bento XVI continua a listar os lugares no Missal de 1970, em que estas orações silenciosas podem ser encontradas: na preparação para a proclamação do Evangelho, a Preparação dos Dons e antes e após da recepção da Sagrada Comunhão do padre.
8. Convertidos para o cantochão, o Sanctus e o Benedictus são geralmente curtos. Conversões polifônicas tendem a ser mais longas e, por esta, razão o Benedictus é adiado para depois da Consagração. (Entre 1921 e 1958 os coros foram orientados para separar o Sanctus e o Benedictus, da mesma forma também quando convertidos para o cantochão.)
9. Ver Jungmann op. cit. pp. 249-250. Ele também discute a possível origem prática destas palavras sendo dito em voz alta, e cita as interpretações alegóricas, e sua importância na difusão da prática da Missa Solene para a Ordinária, registrada nos escritos de Amalarius, Bernold de Constança e Durandus (op. cit. pp. 258-9 e nota de rodapé 54).
10. Habacuc 2:20: “Mas o Senhor reside em sua santa morada; silêncio diante dele, ó terra inteira!” (‘Dominus autem in templo sancto suo: sileat a facie eius omnis terra.’) O Hino dos Querubins da Liturgia de São Tiago do século 4 foi traduzido para o Inglês por Gerard Moultrie como “Deixe toda carne mortal manter silêncio. – Let all mortal flesh keep silence” Cf. Sofonias 1:7: “Silêncio diante do Senhor Javé! Porque o dia do Senhor está próximo, o Senhor preparou um sacrifício, santificou os seus convidados” (‘Silete a facie Domini Dei: quia iuxta est dies Domini, quia praeparavit Dominus hostiam sanctificavit vocatos suos.’)
11. Sabedoria 18,14-15: ‘Cum enim quietum silentium contineret omnia et nox in suo cursu medium iter haberet, omnipotens sermo tuus de caelo a regalibus sedibus durus debellator in mediam exterminii terram prosilivit’
12. São Roberto Belarmino, “Controvérsias” Livro VI, capítulo 12. “Temos também o exemplo do sacrifício da Antiga Lei. Pois que na oferta solene do incenso, foi ordenado que apenas o sacerdote deva passar através do véu para o sacrifício, rezando por si e pelo povo. Este ficava de fora, esperando, e não só não ouvia o sacerdote, como não o podia sequer vê-lo. Ainda …, “quando Cristo foi pendurado na Cruz, como sacrifício exemplar de todos os sacrifícios, Ele fez a Sua oferta em silêncio.” Citado em “A Missa dos Santos e Thomas Crean OP ‘The Mass and the Saints’ (Oxford: Family Publications, 2008) p. 104; ver também nota 9 acima. (Tradução nossa)
13. Beato John Henry, Cardeal Newman (1848): ‘Loss and Gain: The Story of a Convert’, Parte II, Cap. 20.
14. Papa Bento XVI op. cit. pp. 158-159, referindo-se e reiterando a sugestão que fez em 1978.
15. Papa Bento XVI op. cit. pp. 159.
16. Beato Papa João Paulo II, Carta Apostólica Spiritus et Sponsa (2003) A primeira citação interna é do Institutio Generalis Liturgiae Horarum, 202.
17. Positio 2: Piedade Litúrgica e Participação.
18. Cf.. Paulo VI Evangelii nuntiandi 42 ‘Nós sabemos bem que o homem moderno, saturado de discursos, se demonstra muitas vezes cansado de ouvir e, pior ainda, como que imunizado contra a palavra.” (‘Qui sunt hodie homines, eos novimus, orationibus iam saturatos, saepe saepius audiendi fastidientes atque – quod peius est – contra verba obdurescentes videri.’)
19. Papa Bento XVI op. cit. p. 154.

Fonte: Antigo Blog do UnaVoce Brasil, desaparecido

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